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Relatório detalha abuso de jogadoras no futebol feminino nos EUA

Documento relata má conduta sexual, abuso verbal e emocional por treinadores da elite do esporte.

Um treinador chamou uma jogadora para analisar o vídeo de um jogo e, em vez disso, lhe mostrou pornografia. Outro era conhecido nos escalões mais altos do futebol feminino por repreender suas jogadoras e depois questioná-las sobre suas vidas sexuais.

Um terceiro treinador coagiu várias jogadoras a ter relações sexuais, comportamento que um time grande achou tão perturbador que o demitiu. Mas, quando ele foi contratado por um rival apenas alguns meses depois, o primeiro clube, que havia documentado seu comportamento em uma investigação interna, não disse nada. Em vez disso, desejou-lhe publicamente boa sorte em seu novo cargo.

Esses e outros detalhes fazem parte de um relatório investigativo muito aguardado sobre abuso no futebol feminino dos EUA. O documento encontrou má conduta sexual, abuso verbal e abuso emocional por treinadores da elite do esporte, na Liga Nacional de Futebol Feminino (NWSL, na sigla em inglês), e emitiu sinais de alerta de que as garotas também sofrem abusos no futebol juvenil.

O relatório foi publicado na segunda-feira (03), um ano depois que jogadoras indignadas com uma cultura de abuso no esporte exigiram mudanças ao se recusar a entrar em campo. Descobriu-se que os líderes da NWSL e da Federação de Futebol dos Estados Unidos - órgão que organiza o esporte no país - bem como proprietários, executivos e treinadores em todos os níveis fracassaram em agir contra volumosos e persistentes relatos de abuso por parte de treinadores.

Todos estavam mais preocupados com processos movidos por treinadores ou com as finanças do futebol feminino do que com o bem-estar das jogadoras, segundo o relatório, criando um sistema em que treinadores abusivos e predatórios podiam se mover livremente de time na elite do futebol feminino.

“Nossa investigação revelou uma liga em que abuso e má conduta - abuso verbal e emocional e má conduta sexual - se tornaram sistêmicos, abrangendo várias equipes, treinadores e vítimas”, escreveu a investigadora Sally Q. Yates no resumo do relatório. “O abuso na NWSL está enraizado em uma cultura mais profunda do futebol feminino, que desde as ligas juvenis normaliza relações abusivas e apaga os limites entre treinadores e jogadoras.”

No ano passado, a seleção nacional dos Estados Unidos contratou Yates, ex-vice-procuradora-geral, e o escritório de advocacia King & Spalding para investigar o esporte depois de reportagens no The Athletic e no Washington Post detalharem acusações de abuso sexual e verbal contra treinadores da NWSL. Depois que a mídia noticiou e que jogos foram adiados quando as jogadoras furiosas protestaram publicamente, os executivos da NWSL se demitiram ou foram demitidos. Em poucas semanas, metade dos treinadores dos dez clubes da liga foram ligados a acusações de abuso, e algumas das melhores jogadoras do mundo contaram suas próprias histórias de maus-tratos.

Cindy Parlow Cone, presidente e ex-integrante da seleção nacional, definiu as descobertas como “comoventes e profundamente preocupantes” em comunicado. Cone disse que a seleção americana está “totalmente comprometida em fazer tudo ao seu alcance para garantir que todas as jogadoras - em todos os níveis - tenham um lugar seguro e respeitoso para aprender, crescer e competir”. Ela também disse que a federação implementará imediatamente várias das recomendações do relatório.

LISTA DE CONDUTA

O relatório fez uma longa lista de recomendações que deveriam ser adotadas pela seleção americana e, em alguns casos, pela NWSL, como, por exemplo, fazer uma lista pública de indivíduos suspensos ou barrados, avaliar minuciosamente os treinadores ao licenciá-los, exigir investigações sobre as acusações de abuso, deixar claras as políticas e regras sobre comportamento e conduta aceitáveis e contratar agentes de segurança das jogadoras, entre outros requisitos.

O documento também levanta a questão de saber se alguns proprietários de clubes da NWSL devem ser punidos ou forçados a vender suas equipes, pois recomendou que a NWSL “determinasse se a ação disciplinar é apropriada para qualquer um desses proprietários ou executivos de equipe”.

Mesmo com muitos dos piores abusos conhecidos publicamente, o relatório de Yates é impressionante no detalhamento meticuloso de quantos dirigentes de futebol poderosos foram informados sobre abusos e quão pouco fizeram para investigar ou detê-los. Entre aqueles cuja inação é detalhada estão um ex-presidente de futebol da seleção nacional; o ex-CEO da organização e treinador da seleção feminina; e um diretor do Portland Thorns, uma das equipes mais populares da NWSL.

“As equipes, a liga e a federação não apenas fracassaram repetidas vezes em responder adequadamente quando confrontadas com relatos de jogadoras e evidências de abuso, mas também falharam em instituir medidas básicas para prevenir e lidar com o problema”, escreveu Yates. Ela acrescentou que “treinadores abusivos passaram de equipe em equipe, endossados por comunicados de imprensa que lhes agradeciam por seu serviço”, enquanto aqueles com conhecimento de sua má conduta continuavam em silêncio.

O relatório disse que o esporte faz pouco para instruir atletas e treinadores sobre assédio, retaliação e confraternização. E observou que um número “esmagador” de jogadoras, treinadores e membros da comissão técnica da seleção americana comentaram que “as jogadoras estão condicionadas a aceitar comportamentos abusivos dos superiores desde jovens”.

Ainda que detalhe as queixas contra vários treinadores, o relatório foca sua narrativa em três: Paul Riley, Rory Dames e Christy Holly. As acusações contra Riley, que treinava o North Carolina Courage, e Dames, que treinava o Chicago Red Stars, foram bem documentadas em reportagens da imprensa. As acusações contra Holly, que foi abruptamente demitido do cargo de treinador do Racing Louisville FC no ano passado com poucas explicações, nunca haviam sido divulgadas publicamente.

O New York Times tentou fazer entrevistas com Riley e Holly no ano passado, mas não recebeu respostas, e nenhum dos dois respondeu imediatamente aos pedidos de comentários na segunda-feira. Dames não retornou imediatamente a ligação de um repórter na segunda-feira.

ACUSAÇÕES

Holly coagiu sexualmente uma jogadora, de acordo com o relatório, convidando-a para sua casa para o que ele disse que seria uma sessão para assistir ao vídeo de uma partida. Em vez disso, ele mostrou pornografia para a jogadora e se masturbou na frente dela. Em outra circunstância, de acordo com o relato, depois de chamar a jogadora novamente sob o pretexto de assistir a um vídeo de jogo, Holly apalpou os órgãos genitais e os seios da jogadora cada vez que o vídeo mostrava que ela cometera um erro.

O relatório também descobriu que havia queixas anteriores de abuso verbal e maus-tratos por parte de Holly, e uma relação com determinada jogadora “que causou um ambiente tóxico para a equipe”. No entanto, houve pouca verificação sobre seu passado quando ele passava de clube a clube.

A investigação descobriu que Riley “se aproveitara de sua posição” de treinador para coagir pelo menos três jogadoras a ter relações sexuais enquanto trabalhava em uma outra liga de futebol feminino, e disse que os investigadores receberam “relatos confiáveis de má conduta sexual com outras jogadoras” que não foram detalhados no relatório final.

Dames, treinador de futebol juvenil por muitos anos, promovia “ambientes de equipe sexualizados” que incluíam conversar com jogadoras jovens sobre suas vidas sexuais, de acordo com o relatório. Esses ambientes “ultrapassaram os limites sexuais” em vários casos, diz o relatório. Dames também gritava e xingava as jogadoras e brincava sobre a idade de consentimento para atividade sexual.

Nos casos de todos os três treinadores, o relatório descobriu que os dirigentes da NWSL e da seleção nacional, bem como proprietários e executivos de equipes, foram repetidamente informados de reclamações de comportamento inadequado, mas em grande parte não fizeram nada para enfrentá-las ou impedir que ocorressem em outros lugares.

Alegações de má conduta sexual foram feitas contra Riley todos os anos de 2015 a 2021, e um questionário anônimo entre jogadoras em 2014 também apontou Riley, então treinador do Portland Thorns, como verbalmente abusivo e sexista. Autoridades de futebol da seleção e da NWSL tiveram acesso aos resultados do questionário, assim como o proprietário do Thorns, Merritt Paulson.

Em 2015, depois que o Thorns conduziu uma investigação própria, Riley foi demitido. Mas, publicamente, a equipe disse que optara por não estender seu contrato, e Riley não foi punido. Quando ele foi contratado por outra equipe da NWSL, meses depois, ninguém da liga ou da federação - que na época efetivamente administrava e financiava a liga - repassou à sua nova equipe nenhuma das reclamações ou informações usadas para fundamentar sua demissão no Thorns.

As jogadoras também reclamaram de Dames por anos, começando em 2014, quando disseram a Sunil Gulati, então presidente de futebol da seleção americana, e Jill Ellis, então treinadora da seleção feminina, que Dames havia criado um ambiente de trabalho hostil no Chicago Red Stars, de acordo com o relatório. Dames também foi chamado de abusivo por suas jogadoras em questionários anônimos e, em 2018, foi investigado depois que outra jogadora reclamou. No entanto, embora uma investigação da seleção nacional sobre esse caso tenha corroborado muitas das queixas, o relatório não foi distribuído para toda a organização, a NWSL ou o Red Stars. E Dames não foi punido.

Além de detalhar o comportamento de vários treinadores proeminentes e a falta de ação de outros, o relatório também registrou indivíduos e organizações que não fizeram o que deveriam ou que tentaram ativamente impedir a investigação - mesmo quando alguns diziam publicamente que estavam cooperando.

Será difícil retificar os problemas identificados no relatório. O futebol nos Estados Unidos é administrado por uma série de organizações - federações, ligas profissionais, clubes juvenis e organizações estaduais de futebol - que têm autoridade sobreposta, uma teia emaranhada que o relatório sugeriu que pode ter desempenhado um papel importante na negligência diante dos relatos de comportamento abusivo.

E as revelações talvez não tenham acabado. Uma investigação conjunta da NWSL e sua associação de jogadoras ainda não foi concluída, e o relatório também não investigou o futebol juvenil, mesmo deixando claro que os investigadores acreditam que o abuso também prevalece nas categorias mais jovens. “As raízes do abuso no futebol feminino são profundas e não serão eliminadas apenas pela reforma da NWSL”, escreveram os investigadores.

Este artigo foi originalmente publicado em New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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